Incorporação segundo a Kabbalah Autêntica

Incorporação segundo a Kabbalah Autêntica

Introdução

A “incorporação” (hitlabshut ou hitkalelut) na Kabbalah autêntica não se refere, como em outras tradições ou visões esotéricas, ao ato de um espírito “tomar” um corpo. Em vez disso, ela descreve uma realidade espiritual muito mais sutil, complexa e interior: a fusão e interpenetração das qualidades espirituais de diferentes almas e sefirot, com o propósito de atingir a correção (tikun) e a adesão ao Criador (Dvekut).

Na abordagem contemporânea da Kabbalah, especialmente conforme interpretada por Baal HaSulam e Rabash, “incorporar-se” a outro é um estado de anulação do ego para se conectar com os desejos espirituais do próximo, superando as barreiras da separação. Esta incorporação não é meramente simbólica — ela ocorre nos níveis mais profundos da alma e é fundamental no avanço espiritual.

Fundamento Espiritual: O Desejo Como Substância da Criação

Toda a criação, segundo a Kabbalah, é desejo de receber prazer. O Criador é o desejo de doar. O caminho da alma é transformar seu desejo de receber por si mesma (egoísmo) em desejo de receber com a intenção de doar (altruísmo).

Neste contexto, a incorporação acontece quando:

• Uma alma assume os desejos de outra como se fossem seus, com a intenção de elevá-los.

• A pessoa começa a sentir os estados interiores do outro, mesmo sem palavras, num campo comum de conexão.

• Cria-se uma unidade funcional e espiritual entre desejos distintos, que se tornam “um só corpo espiritual”.

Três Tipos de Incorporação na Kabbalah

1. Incorporação entre almas: Uma alma se incorpora nas outras ao anular sua vontade individual para se unir à intenção de doar dos demais.

2. Incorporação entre sefirot: Cada sefirá contém todas as outras. Por exemplo, em Chesed há Gevurah, Netzach, Hod, etc. Isso permite que diferentes forças ajam em harmonia.

3. Incorporação com o Criador: O estado de Dvekut, no qual a criatura alcança equivalência de forma com o Criador e se incorpora Nele.

Exemplo Prático 1 – No Grupo de Estudo

Imagine um estudante avançado de Kabbalah em um grupo de dez pessoas (um  minian “dezena”). Durante o estudo, ele percebe que um dos amigos está abatido, desconectado, sem forças para se esforçar na intenção.

Se ele está treinado na incorporação, ele não tenta convencer o amigo com palavras. Em vez disso, ele sente a carência do outro como se fosse sua e, durante o estudo ou oração, ele eleva um pedido (MAN) não por si, mas por aquele amigo. Isso é incorporação.

“A oração de muitos é aceita, e mesmo que ele esteja rezando sozinho, se incorpora nos desejos dos demais, é como se muitos estivessem pedindo.” (Rabash)

Este exemplo mostra como o praticante assume interiormente a dor e o anseio do próximo, elevando-os como se fossem seus — este é o verdadeiro ato de incorporação segundo a Kabbalah.

Exemplo Prático 2 – Na Vida Cotidiana

Uma mãe sente que o filho está em sofrimento, mesmo sem ele dizer uma palavra. Isso é um exemplo instintivo de incorporação emocional e biológica.

No caminho espiritual, um estudante de Kabbalah desenvolve essa sensibilidade para todos os seres. Ele sente o outro como parte de si, sem se confundir com ele, mas assumindo sua falta de conexão com a Luz como uma responsabilidade própria.

Por exemplo, ao entrar em um ambiente com pessoas ansiosas ou superficiais, um cabalista não se afasta ou julga. Ele “incorpora” aquele ambiente, absorve seus desejos e trabalha interiormente com eles, transformando-os em um pedido pela correção coletiva.

Incorporação e o Fim da Correção

Segundo a Kabbalah, no fim da correção (Gmar Tikun), todas as almas estarão completamente incorporadas umas nas outras. As barreiras entre os “eus” cairão, e todos serão como um único desejo unido pela intenção de doar ao Criador. Essa estrutura é chamada de Adam HaRishon corrigido — o sistema unificado das almas.

Obstáculos à Incorporação

1. Orgulho espiritual – a crença de que se é superior ou mais “adiantado”.

2. Falta de empatia interior – a incapacidade de sentir o outro como parte do seu próprio sistema.

3. Individualismo moderno – a cultura da separação e da autoafirmação impede a anulação necessária para a incorporação.

Esses obstáculos são superados pelo trabalho constante com o grupo, a oração e o estudo com intenção correta (Lishmá).

Conclusão

Incorporar-se, na Kabbalah , é um ato de doação suprema. É permitir que o outro viva dentro de você — não para absorver sua identidade, mas para elevá-la junto à sua. É criar um espaço comum entre as almas, onde o Criador pode habitar.

É por meio da incorporação — e não do isolamento espiritual — que a alma progride, corrige-se e contribui com a correção de toda a criação.

Referências

• Baal HaSulam, Prefácio à Sabedoria da Kabbalah, Introdução ao Livro do Zohar, Carta 13.

• Rabash, Escritos Sociais, O Amor dos Amigos, O Que é Incorporar-se.

• Michael Laitman, O Guia dos Cabalistas para o Mundo Espiritual, Artigos sobre o Grupo.

Sônia Scheurlein Marques